quinta-feira, 7 de abril de 2011

vivendo no "liquidificador cultural¹"

Uma pintura de Klee chamada Angelos Novus mostra um anjo olhando como que a ponto de distanciar-se de alguma coisa que está contemplando fixamente. Seus olhos estão arregalados, sua boca, aberta, suas asas, despregadas. É assim que se retrata o anjo da história. Seu rosto está virado para o passado. Onde percebemos um encadeamento dos fatos, ele vê uma só catástrofe, que acumula ruínas sobre ruínas e as atira seus pés. O anjo gostaria de ficar, de despertar os mortos e restaurar o que foi destruído. Mas uma tormenta está soprando do Paraíso, ela fustiga suas asas com tamanha violência que o anjo não consegue mais fechá-las. Essa tormenta impele-o para o futuro, para o qual suas costas estão voltadas, enquanto o monte de destroços diante dele cresce até o céu .Essa tormenta é o que chamamos de progresso.

Walter Benajmin – Década de 40

Imagem: Paul Klee – Angelos Novus década 20

Sob qual ótica devemos encarar nossas cidades hoje? E nossa produção arquitetônica? As certezas em um urbanismo ortodoxo, modernista, cujo bem comum e bem estar social, seriam as metas a serem alcançadas através de um racionalismo progressista? O século XX explorou ao máximo as premissas do menos é mais, preconizadas por Mies van der Rohe, do Homem Ideal de Le Corbusier, e infelizmente foram concebidas grandes falácias em conjuntos arquitetônicos, desprovidos de urbanidade e de um imaginário coletivo capaz de suscitar encontros e surpresas. Erro dos arquitetos e urbanistas ou de quem financiou estas obras e deturpou suas ideias sociais iniciais? Ao menos os modernistas vestiram a camisa por uma arquitetura igualitária, social, industrial.
Nesse sentido questiona-se: foi o progresso, o grande responsável pela perda da cidade tradicional? Da arquitetura vernacular? Do romantismo preconizado na visão bucólica de uma cidade que já não existe mais? Haveria espaço para um flaneur em Chandigarh, em Brasília, no Pedregulho? Como caminharia Walter Benjamin em meio a esses belos conjuntos de arquitetura impecável, mas desprovidos da vitalidade inerente à cidade tradicional?
Se o less is more, foi trocado por less is a bore, de Robert Venturi, percebe-se que apenas a alteração retórica não foi capaz de suprir as demandas do século em desenvolvimento. Da racionalidade e das certezas modernistas, recaiu-se no discurso pós-modernista, deturpado em sua interessante proposta de resgate historicista e fragmentos e recordações. Se o modernismo mal interpretado foi efetivado, o pós-modernismo recaiu em um novo mecenato, sucumbindo ao mercado imobiliário e propiciando o surgimento de frontões neoclássicos norte-americanos em balneários famosos nas praias brasileiras.
Sob a égide de um resgate histórico, muitas vezes desconexos da realidade local, foram criados condomínios que infelizmente surgiram como fuga para uma pretensa segurança, que em sua matriz auto-segregacionista, acabaram causando uma fragmentação maior no tecido urbano e consequentemente maior separação, maior conflito, e menor interação na cena pública.
As cidades estão cada vez mais polifônicas, híbridas em formas e referências, conforme o antropólogo italiano Massimo Canevacci, então é hora de buscar compreender seus signos e contra-signos nesse grande “liquidificador cultural” em que se vive.
Novos materiais, novas soluções, arquitetura inteligente, retorno aos materiais vernaculares, às técnicas retrospectivas, tudo vale e é até salutar nesse processo de efervescência presente. Nesse sentido podem surgir pontes entre referências históricas e novos materiais, ou o tradicional - em colagem e patchwork com a inovação, talvez essa seja a “cara” da arquitetura e das cidades para o século que se inicia. Uma identidade verdadeiramente híbrida.
Sem rótulos, diversas bandeiras podem ser levantadas, e já o foram: a sustentabilidade, a globalização, o universal versus o local, a arquitetura verde, as cidades metabolistas,..., enfim todos estes temas já se tornaram personagens – reificados, e tomaram café em entrevistas com famosos apresentadores e teóricos.
A intenção do presente ensaio não é a de dar respostas, mas sim a de provocar, e fazer pensar, de negar um saudosismo historicista nocivo e a-dialético e ao mesmo tempo, refutar uma crença desmesurada na tecnologia esterilizante. Urge treinar o olhar e fazer-se olhar na cidade, urge caminhar mais entre os fragmentos urbanos, urge aproximar-se mais da realidade urbana, ao invés de planejar a partir de um gabinete ou de modelos importados de outras realidades. Alguém gostaria de se pronunciar? 

Por: Murad Jorge Mussi Vaz
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¹ Liquidificador - cultural, termo usado por Massimo Canevacci, em sua obra Sincretismos. Editora Studio Nobel, SP, 1996.

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